Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 10
10. ENCURRALADO!
 

Subitamente, isso tinha parecido inevitável. Era a mais pura ironia dramática. Ele havia entrado no Tempo pela última vez, puxado o nariz de Finge pela última vez, trazido o cântaro à fonte pela última vez. Tinha de ser então que ele fosse apanhado.

Fora Finge quem rira?

Quem mais o seguiria, ficaria na espera, permaneceria na sala ao lado e cairia na risada?

Bem, então, estava tudo perdido? E porque naquele momento aflitivo ele estava certo de que tudo estava perdido, não lhe ocorreu fugir novamente ou tentar passar para a Eternidade uma vez mais. Ele enfrentaria Finge.

Ele o mataria, se necessário.

Harlan caminhou para a porta por detrás da qual a risada havia ressoado; caminhou para ela com o passo leve e firme de um assassino premeditado. Desligou o sinal da porta automática e abriu-a com a mão. Cinco centímetros. Dez. Ela se moveu sem ruído.

O homem da sala ao lado estava de costas, A figura parecia muito alta para ser Finge, e este fato penetrou na mente agitada de Harlan e impediu-o de avançar mais.

Então, como se a paralisia que parecia manter ambos os homens em rigidez estivesse cedendo lentamente, o outro se voltou, centímetro por centímetro.

Harlen não presenciou a conclusão daquele movimento. O perfil do outro ainda não estava à vista quando Harlan, retendo uma súbita rajada de terror com um último fragmento de força moral, atirou-se para trás pela porta. Seu mecanismo, e não Harlan, fechou-a silenciosamente.

Harlan retirou-se às cegas. Somente conseguia respirar lutando violentamente com a atmosfera, forçando o ar a entrar e empurrando-o para fora, enquanto seu coração batia loucamente, como se num esforço para escapar de seu corpo.

Finge, Twissell, todo o Conselho junto, não poderia tê-lo desconcertado tanto. Não fora o temor de nada físico que o tinha amolecido. Mais propriamente, foi a aversão quase instintiva pela natureza do incidente que lhe havia acontecido.

Ele ajuntou a pilha de livros-filme numa massa informe e conseguiu, após duas tentativas infrutíferas, restabelecer a porta para a Eternidade. Ele a passou com as pernas operando mecanicamente. De alguma forma, forçou caminho para o século 575, e então para os seus aposentos pessoais. Sua posição de Técnico, novamente avaliada, novamente apreciada, salvou-o uma vez mais. Os poucos Eternos que ele encontrou, voltaram-se automaticamente para um lado e olharam firmemente sobre sua cabeça enquanto o faziam.

Isso foi favorável, pois faltava-lhe habilidade para tirar do rosto a careta de caveira que sentia que estava fazendo, ou qualquer força para devolver-lhe o sangue.

Mas eles não olharam, e ele agradeceu, por isso, o Tempo, a Eternidade e qualquer coisa obscura que compusesse o Destino.

Ele não havia verdadeiramente reconhecido o outro homem da casa de Noys pela aparência, embora conhecesse sua identidade com terrível certeza.

Na primeira vez que ouvira um ruído na casa, ele, Harlan, estivera rindo, e o som que interrompeu sua risada foi o de algo pesado caindo, na sala ao lado. Na segunda vez, alguém rira na sala ao lado e ele, Harlan, derrubara uma mochila de livros-filmes. Na primeira vez, Harlan tinha-se voltado e vislumbrando uma porta fechando-se.

Na segunda vez, ele, Harlan, fechou uma porta enquanto um estranho se voltava.

Ele havia se encontrado consigo mesmo!

No mesmo Tempo e quase no mesmo lugar, ele e seu análogo por diversos fisiodias, quase haviam estado face a face. Havia ajustado erradamente os controles, regulando-os para um instante no Tempo que já tinha usado, e ele, Harlan, tinha visto Harlan.

Ele tinha iniciado seu trabalho com uma sombra de horror sobre si durante dias depois. Chamou a si próprio de covarde, mas isso não ajudou.

Na verdade, desde aquele momento as coisas tomaram uma direção desfavorável. Ele conseguiu entender as coisas.

O momento-chave era o instante em que havia ajustado os controles da porta para a sua entrada no século 482 pela última vez, e, de alguma forma, tinha-os ajustado erradamente. Desde então, as coisas correram mal, mal.

A Mudança de Realidade no século 482 deu-se durante aquele período de desespero e acentuou-o. Nas duas semanas anteriores, ele havia encontrado três Mudanças de Realidade propostas que continham falhas menores, e agora ele escolheu entre elas, embora nada pudesse fazer para mover-se à ação.

Ele escolheu a Mudança de Realidade 2456-2781, V-5, por uma série de razões. Das três, esta era a mais alta na escala do Tempo, a mais distante. O erro era de minuto, mas significante em termos de vida humana. Precisava, então, apenas de uma pequena viagem até o século 2456 para descobrir a natureza da análoga de Noys na nova Realidade, por uso de uma pequena pressão de chantagem.

Mas o desânimo de sua recente experiência o traiu. Não mais lhe parecia uma coisa simples, essa leve utilização de exposição ameaçada. E uma vez que descobrisse a análoga de Noys, e daí? Colocar Noys em seu lugar como arrumadeira, costureira, operária, ou o que fosse. Certamente. Mas o que, então, seria feito com sua análoga? com qualquer marido que a análoga pudesse ter? Família? Filhos?

Não havia pensado em nada disso, antes. Tinha evitado o pensamento. "Válido até dia..."

Mas agora ele não conseguia pensar em nada mais.

Então, escondeu-se em seu quarto, odiando-se, enquanto Twissell o chamava, com a voz cansada perguntando e um pouco confuso.

- Harlan, você está se sentindo mal? Cooper disse-me que você pulou diversos períodos de debate.

Harlan tentou aliviar a preocupação do rosto. - Não, Computador Twissell. Estou um pouco cansado.

- Bem, isso é desculpável, de qualquer forma, rapaz. Então, o sorriso em seu rosto tornou-se tão apertado quanto se tornaria para desaparecer inteiramente. - Ouviu dizer que o 482 foi Mudado?

- Sim - respondeu Harlan brevemente.

- Finge chamou-me - disse Twissell - e pediu-me que lhe dissesse que a Mudança obteve pleno êxito.

Harlan encolheu os ombros, e então notou o olhar de Twissell, na Comunitela, firme sobre si. Ficou embaraçado e disse: - Sim, Computador?

- Nada - disse Twissell, e talvez fosse o manto da idade passando sobre seus ombros, mas sua voz era inexplicavelmente triste. - Pensei que você estava prestes a dizer algo.

- Não - disse Harlan. - Eu nada tinha a dizer.

- Bem, então, vejo-o amanhã de manhã na Sala de Computação, rapaz. Tenho um bom bocado para dizer.

- Sim, senhor - disse Harlan. Ele fitou a tela por longos minutos, depois que esta se escureceu.

Aquilo tinha quase soado como uma ameaça. Finge tinha chamado Twissell, não tinha? O que teria ele dito que Twissell não comunicou?

Mas uma ameaça exterior era do que ele precisava. Combater um mal do espírito era como estar numa areia movediça e agitá-la com uma vara. Combater Finge era completamente outra coisa. Harlan havia se lembrado da arma à sua disposição e, pela primeira vez em dias, sentiu uma fração de retorno de autoconfiança.

Era como se uma porta tivesse se fechado e uma outra se houvesse aberto. Harlan tornou-se tão febrilmente ativo quanto fora catatônico anteriormente. Viajou para o século 2456 e induziu o Sociólogo Voy a agir exatamente de acordo com sua própria vontade.

Ele o fez perfeitamente. Conseguiu a informação que procurava.

E mais do que procurava. Muito mais.

A confiança é recompensada, aparentemente. Havia um provérbio de seu século natal que dizia: "Agarre a urtiga firmemente e ela se tornará uma vara com a qual golpeará seu inimigo."

Em resumo, Noys não tinha análoga na nova Realidade. Nenhuma análoga, de forma alguma. Ela poderia assumir sua posição na nova sociedade da maneira mais imperceptível e conveniente possível, ou poderia permanecer na Eternidade. Não poderia haver razão para se negar sua ligação, exceto pelo fato altamente teórico de que ele tinha infringido a lei - e ele sabia muito bem como derrubar esse argumento.

Então ele subiu correndo a escala do Tempo para dar a Noys as grandes novas, para banhar-se em sucesso inesperado após alguns dias horríveis de falha aparente.

E nesse momento a caldeira parou.

Ela não reduziu a velocidade; simplesmente parou. Se o movimento houvesse sido um só ao longo de qualquer uma das três dimensões do espaço, uma parada tão súbita teria despedaçado a caldeira, feito de seu metal uma incandescência vermelha-escura, transformado Harlan numa coisa de ossos quebrados e carne úmida e esmagada.

Da maneira que foi, simplesmente o fez dobrar de náusea e estalar de dor interna.

Quando conseguiu enxergar, procurou pelo temporômetro e fitou-o com visão vaga. Marcava 100.000.

O que de alguma forma o alarmou. Era um número muito redondo.

Ele se voltou febrilmente para os controles. O que havia saído errado?

Isso também o alarmou, pois nada conseguia ver de errado. Nada havia desengatado a alavanca de direção. Ela continuava firmemente engrenada na direção ascendente.

Não havia curto-circuito. Todos os relógios indicadores estavam no limite preto de segurança. Não havia falta de energia. À minúscula agulha, que marcava o constante consumo de megacoulombs de energia, insistia calmamente que a energia estava sendo consumida na proporção normal.

O que, então, havia detido a caldeira?

Lentamente, e com considerável relutância, Harlan tocou a alavanca de direção, fechou sua mão em torno dela. Ele a empurrou para neutro, e a agulha do medidor de energia declinou para zero.

Ele puxou a alavanca na outra direção. Novamente subiu o medidor de energia, e desta vez o temporômetro se agitou para baixo ao longo da linha de séculos.

Para baixo - para baixo - 99.983 - 99.972 - 99.959...

Novamente Harlan mudou a alavanca de posição. Para cima, outra vez. Lentamente. Bem lentamente.

Então, 99.985 - 99.993 - 99.997 - 99.998 - 99.999 - 100.000...

Estrondo! Nada além do 100.000. A energia da Nova Sol estava sendo silenciosamente consumida sem nenhum objetivo.

Ele desceu novamente, mais. Atirou-se para cima.

Estrondo!

Seus dentes estavam trincados, seus lábios repuxados para trás, sua respiração áspera. Sentiu-se como um prisioneiro lançando-se cruelmente contra as barras de uma prisão.

Quando parou, uma dúzia de estrondos depois, a caldeira permaneceu firmemente no século 100.000. Até aí, e não mais.

Ele mudaria as caldeiras! (Mas não havia muita esperança nesse pensamento.)

No silêncio vazio do século 100.000, Andrew Harlan saiu de uma caldeira e escolheu ao acaso uma outra coluna de caldeira.

Um minuto depois, com a alavanca de direção na mão, ele fitou a marcação dos 100.000 e percebeu que ali, também, não conseguiria passar.

Enfureceu-se! Agora! Desta vez! Quando as coisas se haviam quebrado tão inesperadamente em seu favor, chegaram a um desastre tão súbito. A maldição daquele momento de mal julgamento ao entrar no século 482 ainda estava nele.

Ele puxou selvaticamente a alavanca para baixo, pressionando-a firmemente até o máximo e conservando-a nele. Pelo menos, de certa forma, ele estava livre agora, livre para fazer qualquer coisa que desejasse. com Noys confinada por detrás de uma barreira e fora de seu alcance, que mais poderiam eles fazer-lhe? Que mais tinha ele a temer?

Ele se conduziu ao século 757 e saltou da caldeira com pouco caso imprudente pelos arredores que ele nunca sentira antes. Forçou seu caminho até a biblioteca do Setor, não falando com ninguém, sem considerar ninguém. Tirou o que queria sem olhar ao redor para ver se era observado. O que lhe importava?

De volta à caldeira e para baixo novamente, sabia exatamente o que faria. Olhou para o grande relógio, quando passou, medindo Fisiotempo Padrão, numerando os dias e marcando os três turnos de trabalho iguais do fisiodia. Finge devia estar em seus aposentos particulares, agora, e isso era um tanto melhor.

Harlan sentiu-se como se estivesse com febre, quando chegou no século 482. Sua boca estava seca e cotonosa. O tórax ferido. Mas sentiu o duro contorno da arma sob a camisa quando a apertou firmemente contra o corpo, e esta era a única sensação que importava.

O Computador-Assistente Hobbe Finge levantou os olhos para Harlan, e a surpresa de seus olhos lentamente cedeu lugar à preocupação.

Harlan observou-o silenciosamente por um instante, deixando a preocupação aumentar e esperando que ela se transformasse em medo. Rodeou lentamente, ficando entre Finge e a Comunitela.

Finge estava parcialmente despido, nu até a cintura. Seu tórax era escassamente peludo, seus peitos inchados e quase femininos. Seu gordo abdômem dobrava-se sobre a cintura da calça.

Ele parece sem dignidade, pensou Harlan com satisfação, sem dignidade e repugnante. Tanto melhor.

Colocou a mão direita na camisa e fechou-a firmemente em torno do cabo de sua arma.

- Ninguém me viu, Finge, portanto, não olhe para a porta - disse Harlan. - Ninguém vem para cá. Você tem de compreender, Finge, que está lidando com um Técnico.

Sabe o que isso significa?

Sua voz era rouca. Sentiu raiva por não estar entrando temor nos olhos de Finge, somente preocupação. Finge ainda procurou por sua camisa e, sem uma palavra, começou a vesti-la.

Harlan continuou. - Conhece o privilégio de ser um Técnico, Finge? Você nunca foi um deles, portanto não pode avaliá-lo. Isso significa que ninguém observa onde você vai ou o que faz. Todos eles olham para outro lado e fazem tanto esforço para não vê-lo, que realmente o conseguem. Eu poderia, por exemplo, ir até a biblioteca do Setor, Finge, e servir-me de qualquer coisa curiosa, enquanto o bibliotecário se preocuparia ativamente com seus registros e nada veria. Posso descer os corredores residenciais do século 482 e qualquer passante desvia-se de meu caminho e jura depois que não viu ninguém. Isso é tão automático. Então você vê, posso fazer o que quero, ir aonde quero. Posso entrar no apartamento particular do Computador-Assistente de um Setor e forçá-lo a dizer a verdade a ponta de arma, e não haverá ninguém para deter-me.

Finge falou pela primeira vez: - O que você segura?

- Uma arma - respondeu Harlan, e tirou-a para fora.

- Reconhece isto? A boca da arma cintilava levemente e terminava numa lustrosa protuberância metálica.

- Se me matar... - começou Finge.

- Não o matarei - interrompeu Harlan. - Num encontro recente você tinha um revólver. Isto não é um revólver. É uma invenção de uma das Realidades passadas do século 575. Talvez você não esteja familiarizado com ela. Foi eliminada da Realidade. Muito vil. Isto pode matar, mas a baixo poder, ativa os centros doloridos do sistema nervoso e paraliza, também. Isto é chamado, ou era chamado, de chicote neurônico. Funciona. Este aqui está completamente carregado. Eu o experimentei num dedo - ele mostrou a mão esquerda com o dedinho endurecido. - Foi bastante desagradável.

Finge agitou-se impacientemente. - A respeito de que é tudo isso, pelo amor do Tempo?

- Há alguma espécie de bloqueio nas colunas de caldeira do século 100.000. Eu o quero removido.

- Um bloqueio nas colunas?

- Não se esforce por parecer surpreso. Ontem você falou com Twissell. Hoje, há o bloqueio. Quero saber o que você disse a Twissell. Quero saber o que foi e o que será feito. Por Tempo, Computador, se não me disser, usarei o chicote. Experimente, se duvida de minha palavra.

- Agora ouça - Finge engoliu um pouco as suas palavras e a primeira ponta de medo se revelou, e também uma espécie de raiva desesperada - se quer a verdade, é esta.

Sabemos sobre você e Noys.

Os olhos de Harlan chamejaram. - O que sobre eu e Noys?

- Pensou que estava tendo sucesso com alguma coisa? - disse Finge. Seus olhos estavam fixos no chicote neurônico e sua testa começava a brilhar. - Por Tempo, com a emoção que você mostrou após seu período de Observação, com o que você fez durante o período de Observação, pensou que não observaríamos você? Eu mereceria ser rebaixado da posição de Computador, se tivesse deixado passar isso. Sabemos que você trouxe Noys para a Eternidade. Soubemos desde o início. Você queria a verdade. Ei-la.

No momento, Harlan menosprezou sua própria estupidez. - Vocês sabiam?

- Sim. Sabíamos que você a havia levado para os Séculos Obscuros. Sabíamos o tempo todo que você entrou no século 482 para supri-la com guloseimas apropriadas; fazendo-se de tolo, com seu Juramento de Eterno completamente esquecido.

- Então, por que não me detiveram? - Harlan estava experimentando os próprios refugos de sua própria humilhação.

- Você ainda quer a verdade? - repetiu Finge, e pareceu ganhar coragem à medida que Harlan afundava em frustração.

- Continue.

- Então, deixe-me dizer-lhe que não o considerei propriamente um Eterno desde o início. Um brilhante Observador, talvez, e um Técnico que passou pelos mecanismos.

Mas não Eterno. Quando o trouxe aqui, nesta última tarefa, foi para provar isso a Twissell, que o estima por alguma razão obscura. Eu não estava apenas testando a sociedade na pessoa da garota, Noys. Eu estava experimentando você, também, e você falhou, como imaginei que falharia. Agora, guarde essa arma, esse chicote, ou seja lá o que for, e saia daqui.

- E você veio uma vez aos meus aposentos pessoais - disse Harlan esbaforidamente, esforçando-se por conservar sua dignidade e sentindo-a escapar de si, como se sua mente e espírito estivessem tão duros e insensíveis quanto o dedinho chicoteado de sua mão esquerda - para estimular-me a fazer o que fiz.

- Sim, é claro. Se quer a frase exatamente, eu o tentei. Disse-lhe exatamente a verdade, que você poderia conservar Noys somente na Realidade então presente. Você preferiu agir, não como um Eterno, mas como um hipócrita. Eu esperava isso de você.

- Eu o faria novamente, agora - disse Harlan asperamente - e desde que tudo isso é sabido, você pode ver que nada tenho a perder.

Avançou o chicote na direção da gorda cintura de Finge e falou por entre lábios pálidos e dentes cerrados: - O que aconteceu a Noys?

- Não tenho idéia.

- Não me diga isso. O que aconteceu a Noys?

- Estou-lhe dizendo que não sei.

O punho de Harlan apertou-se no chicote; sua voz era baixa. - Sua perna primeiro. Isto vai doer.

- Pelo amor do Tempo, ouça. Espere!

- Certo. O que aconteceu a ela?

- Não, ouça. Por enquanto é apenas uma quebra de disciplina. A Realidade não foi afetada. Fiz verificações nela. Rebaixamento de posição é tudo que você sofrerá.

Se me matar, contudo, ou ferir-me com intenção de matar-me, você terá atacado um superior. Há para isso a pena de morte.

Harlan sorriu, diante da futilidade da ameaça. Em face do que já havia acontecido, a morte ofereceria uma escapatória que, em finalidade e simplicidade, não tinha igual.

Finge obviamente entendeu mal as razões do sorriso. Disse apressadamente: - Não pense que não há pena de morte na Eternidade porque você nunca sofreu uma. Nós sabemos delas; nós, Computadores. O que é mais: têm havido execuções, também. É simples. Em qualquer Realidade, há grandes números de acidentes fatais nos quais os corpos não são recuperados. Foguetes explodem no ar, aviões afundam no meio do oceano ou reduzem-se a pó contra montanhas. Um assassino pode ser colocado num desses receptáculos minutos, ou segundos, antes dos resultados fatais. Isso vale a pena para você?

Harlan agitou-se e disse: - Se você está protelando para se salvar, isso não vai adiantar. Deixe-me dizer-lhe isto: não temo punição. Além do mais, pretendo ter Noys. Eu a quero agora. Ela não existe na Realidade corrente. Não tem análoga. Não há razão por que não possamos estabelecer ligação formal.

- Isso é contra os regulamentos de Técnico...

- Deixaremos o Conselho Geral decidir - disse Harlan, e seu orgulho se manifestou, enfim. - Não temo uma decisão adversa, também, mais do que tenho medo de matá-lo.

Não sou um Técnico comum.

- Porque você é o Técnico de Twissell? - e houve uma estranha expressão no rosto redondo e suado de Finge, que poderia ter sido de ódio, ou de triunfo, ou de um pouco de cada.

- Por razões muito mais importantes do que essa - disse Harlan. - E agora... com firme determinação ele tocou o dedo no ativador da arma.

Finge gritou. - Então vá ao Conselho. Ao Conselho Geral; eles sabem. Se você é tão importante... - ele se calou, resfolegando.

Por um momento, o dedo de Harlan deteve-se, irresolutamente. - O quê?

- Acha que eu agiria unilateralmente num caso como este? Comuniquei o incidente todo ao Conselho, acompanhando-o com a Mudança de Realidade. Aqui! Aqui estão as duplicatas.

- Quieto, não se mova.

Mas Finge desprezou essa ordem. com velocidade, como o impulso de um demônio possesso, Finge estava em seus arquivos. O dedo de uma das mãos localizou a combinação-código da gravação que ele queria e os dedos da outra introduziram-na no arquivo. Uma lingueta de fita prateada deslizou para fora da mesa, com sua configuração de pontos quase visível a olho nu.

- Quer que ela seja tocada? - perguntou Finge, e sem esperar, enfiou-a no toca-fitas.

Harlan ouviu, paralizado. Era bem claro. Finge havia relatado por completo. Tinha detalhado cada movimento de Harlan nas colunas de caldeira. Não havia deixado passar um de que Harlan pudesse lembrar-se até o ponto em que fora feito o relatório.

Finge gritou quando o relatório terminou: - Agora, então, vá ao Conselho. Não pus bloqueio no Tempo. Eu não saberia como fazê-lo. E não pense que eles estão despreocupados quanto ao assunto. Você disse que falei ontem com Twissell. Contê-lhe que Técnico importante é você. E se quiser matar-me, primeiro, mate-me e vá para o Tempo.

Harlan não podia deixar passar a verdadeira exultação da voz do Computador. Naquele momento ele obviamente se sentiu suficientemente vitorioso para acreditar que mesmo uma chicotada neurônica o deixaria no lado proveitoso do resultado.

Por quê? Seria a bancarrota de Harlan tão cara para seu coração? Seria o seu ciúme por Noys uma paixão tão completamente consumidora?

Harlan fez pouco mais do que formular as perguntas na mente, e então o assunto todo, Finge e tudo, pareceu-lhe subitamente insignificante.

Ele colocou no bolso a sua arma e atirou-se porta afora, em direção à coluna de caldeira mais próxima.

Fora o Conselho, então, ou Twissell, no final das contas. Ele não temia nenhum deles, nem todos juntos.

Com cada dia passado do último e incrível mês, ele havia se tornado mais convencido de sua própria indispensabilidade. O Conselho, mesmo o próprio Conselho Geral, não teria escolha, senão chegar a um acordo quando se tratasse de trocar uma garota pela existência de todos da Eternidade.
 
© alguemsemnome,
книга «O Fim da Eternidade».
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