Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 9

Quando sua esposa voltou já era bem tarde. Entrou pé ante pé, mas ele ouviu, abriu os olhos e apressou-se em fechá-los novamente. Ela queria mandar Gerassim embora e ficar ali com ele, mas ele abriu os olhos e disse-lhe que fosse embora.

– Está com muita dor?

– Como sempre.

– Tome ópio.

Ele concordou e bebeu uma dose. Ela se foi.

Até mais ou menos três da manhã ele ficou entorpecido em um sofrimento inconsciente. Tinha a impressão de que ele e a sua dor estavam sendo empurrados para dentro de um saco negro, estreito e profundo, mas, por mais força que fizessem, ainda não conseguiam empurrá-los até o fundo. E essa sensação terrível vinha acompanhada de grande agonia. Ele estava apavorado e ainda assim queria cair para dentro do saco. Debatia-se e ao mesmo tempo cooperava. E eis que então, subitamente, rompia o saco, caía e recuperava a consciência. Lá estava Gerassim, ainda sentado aos pés da cama, cochilando calma e pacientemente, enquanto ele jazia com suas pernas inúteis descansando nos ombros do rapaz. Viu a mesma vela com sua chama e sentiu a mesma dor que não lhe dava sossego.

– Vá deitar, Gerassim – sussurrou.

– Não se preocupe, senhor, vou ficar um pouco mais!

– Não. Pode ir.

Tirou suas pernas dos ombros de Gerassim, virou-se de lado e começou a sentir pena de si mesmo. Esperou até que Gerassim entrasse no outro quarto, controlou-se um pouco e pôs-se a chorar como uma criança. Chorou por sua solidão, seu desamparo, pela crueldade do ser humano, a crueldade de Deus e a ausência de Deus.

“Por que o Senhor fez isso comigo? Por que me fez chegar até esse ponto? Por quê? Por que torturar-me tão horrivelmente?”

Não tinha esperança de ser respondido, mas mesmo assim chorava por não haver resposta, por não ser possível encontrar resposta. A dor ressurgiu ainda mais forte, mas ele não fez um movimento, não chamou ninguém. Dizia apenas: “Vá em frente! Maltrate-me! Mas por quê? O que foi que eu fiz? Por que tudo isso?”.

Até que pensou e não só parou de chorar, como reteve a respiração e ficou atento: estava ouvindo, parecia, não uma voz externa, mas a voz de sua alma, ouvia as ondas de seus pensamentos que levantavam dentro dele.

“O que é que você quer?” foi a primeira coisa possível de ser traduzida em palavras que ouviu. O que você quer? O que você quer?, repetia a voz.

“O que eu quero? Parar de sofrer. Viver”, respondeu.

E novamente pôs-se a escutar com tamanha atenção que nem mesmo sua dor conseguiu distraí-lo.

“Viver. Viver como?”, perguntava a voz.

“Ora, viver como antes – viver bem, agradavelmente.”

“Como vivia antes? Bem e agradavelmente?”, indagou a voz.

E ele começou a repassar em sua imaginação os melhores momentos de sua agradável vida. Mas, estranhamente, nenhum desses melhores momentos de sua vida tão agradável agora lhe pareciam o que pareceram na época – nenhum deles, exceto as primeiras lembranças de infância. Lá na infância, havia alguma coisa realmente agradável com a qual seria possível viver, se pudesse recuperá-la. Mas a pessoa que conhecera essa felicidade já não existia; era como a lembrança de outra pessoa.

Do período que produziu o atual Ivan Ilitch para cá tudo que parecera, na época, alegria, agora se desvanecia ante seus olhos e transformava-se em alguma coisa trivial e, em alguns casos, até repugnante.

E quanto mais distanciava-se da infância e aproximava-se do presente, mais sem sentido e duvidosas eram tais alegrias. Começou na época em que era estudante de Direito. Havia ainda ali alguma coisa verdadeiramente boa – alegria, amizade, esperanças. Mas já no final do curso esses bons momentos também já estavam tornando-se mais raros. Mais tarde, durante os primeiros anos de sua carreira oficial quando trabalhava para o governador, houve outros bons momentos: a lembrança do amor por uma mulher. Depois disso tudo foi ficando confuso e havia cada vez menos coisas boas de que pudesse lembrar. Quanto mais longe ia, pior ele as achava.

Seu casamento... tão gratuito quanto o desencanto que se seguiu. E o mau hálito de sua esposa e os momentos de sensualidade e a hipocrisia! E aquela odiosa vida oficial e a preocupação com dinheiro. Um ano, dois anos, dez, vinte e sempre a mesma coisa. E quanto mais o tempo passava, mais detestável ficava. “Como se eu estivesse caindo montanha abaixo, imaginando estar subindo. E era assim mesmo. E na opinião dos outros eu estava o tempo todo subindo e todo o tempo minha vida deslizava sob meus pés. E agora acabou tudo e é hora de morrer. Mas do que se trata afinal? Por que tem de ser assim? Não pode ser que a vida seja tão detestável e sem sentido. E se é realmente tão detestável e sem sentido, por que então devo morrer e morrer nessa agonia? Há alguma coisa errada.”

“Talvez eu não tenha vivido como deveria,” ocorreu-lhe de repente. “Mas, como, se eu sempre fiz o que devia fazer?”, respondeu, imediatamente descartando essa hipótese; a solução para o enigma da vida e da morte era algo impossível de encontrar.

“Então o que você quer agora? Viver? Viver como? Viver como vivia no Tribunal, quando o oficial anunciava: 'O júri vai se reunir. O júri vai se reunir!'... O júri vai se reunir, o júri vai se reunir!”, repetiu para si mesmo. “Eis a minha sentença. Mas eu não sou culpado!”, gritava com fúria. “Para que tudo isso?” E parou de gritar, mas virando-se para a parede pôs-se a repassar a mesma pergunta: Por quê, e qual a razão de todo esse horror?

Mas por mais que se perguntasse, não conseguia encontrar a resposta. E quando ocorria-lhe pensar que tudo isso vinha do fato de não ter vivido como devia ter vivido, imediatamente lembrava em que ordem e retidão vivera sua vida e mandava embora essa estranha idéia.
© alguemsemnome,
книга «A Morte de Ivan Ilitch».
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